Patricia Finotti

(crédito: Marilda Rodovalho)

Marilda Rodovalho / (@relatosdeumcoracaobipolar)

Já contei, em outras oportunidades, da minha relação com Deus. De como em muitas ocasiões pude senti-lo comigo, me amparando, me protegendo, me guiando em minhas decisões. Até mesmo dos presentes que Ele me deu, meu jardim de flores amarelas, meu arco-íris.

Mas a ocasião em que pude senti-lo mais junto a mim, mais próximo, foi justamente aquela em que mais precisei, na morte de meu pai. Posso dizer sem medo de errar que aquele foi o meu momento de maior dor, algo tão insuportável que até hoje não consigo entender como pude prosseguir respirando, como pude continuar existindo.

Eu me lembro de que, uma semana depois, uma amiga me perguntou como eu me sentia, e eu respondi que era como se eu fosse uma casca de ovo que se quebrara e só restaram as partes pequenas no chão, vazias, sem vida, incapazes de serem coladas. Era assim que me sentia uma semana depois, e um mês, um ano. Francamente, não me lembro dos anos de 1992 e 1993, ele faleceu no final de 91. Foi como se esses anos não existissem, eu passei por eles como um autômato, simplesmente passei.

Mas voltando àquela data, foi como se Deus quisesse me avisar antes que acontecesse. Meu pai havia saído do Hospital, após um enfarto, há apenas uma semana; os médicos foram bem claros, ele não resistiria a outro enfarto naquele momento, precisava se recuperar, se fortalecer, mas estava bem, desde que levasse o tratamento a sério e quanto a isso nós garantíamos que sim, ele levaria.

Ficamos vendo televisão, conversando, então meu irmão foi embora com sua esposa e filhos e nos preparamos para dormir, meu pai já estava deitado e minha mãe ainda mexia na cozinha. Eu me lembro de que me dirigi ao banheiro para escovar os dentes e de repente uma sensação forte de que alguém me aguardava atrás da porta fechada para me dizer algo fez meu sangue congelar. Eu simplesmente parei antes de abrir a porta do banheiro e disse: “Eu não quero ouvir. Eu não aceito.” E naquele instante eu fechei os olhos e voltei para o quarto para não ouvir quem quer que fosse e o que quer que fosse e me deitei.

Menos de uma semana depois, fui acordada com os gritos da minha mãe chamando por mim e minha irmã. Meu pai, que também sofria de epilepsia, estava tendo uma convulsão e nós sabíamos que o esforço seria demais para o coração dele. Ligamos para o meu irmão, para que ele viesse correndo com o carro enquanto esperávamos a convulsão acabar. Assim que acabou, começaram as dores no peito; meu irmão chegou e junto com minha irmã o levaram ao hospital. Minha mãe e eu ficamos esperando o meu tio, que já estava vindo e iríamos com ele atrás.

Tudo não levou uma hora, foi tão rápido. Ainda assim, não o bastante. Mas eu sabia. No fundo, eu sabia; mesmo enquanto eu vinha rezando baixinho no carro do meu tio, implorando a Deus que o salvasse, que não o tirasse de mim; fazendo mil promessas que levaria mil vidas para cumprir, mesmo naqueles instantes, eu já sabia. Mas não conseguia admitir.

Então, quando o carro parou na rua do hospital, eu desci correndo e vi minha irmã vindo em minha direção chorando, querendo me abraçar, eu comecei a gritar como uma louca que não aceitava. Eu simplesmente não aceitava. Eu não queria o abraço dela, nem de ninguém, eu não queria explicações razoáveis. Eu queria o meu pai e apenas ele. E eu desci a rua chorando e xingando Deus de traidor, de maldito. Como era possível que logo Ele fizesse aquilo comigo? Como podia me tirar a pessoa que mais amava apesar de todas as promessas feitas? O que Ele queria, a minha vida? Pois que a levasse, porque nada mais fazia sentido mesmo.

Demorou para que meus irmãos conseguissem me conter, me parar e me levar de volta à porta do hospital. Não quis entrar. Não havia mais nada ali que fosse meu. Eu já não pensava, não conseguia raciocinar. Meu tio e minha mãe ficariam para tomar as providencias necessárias, meus irmãos e eu iríamos avisar nossa irmã caçula que morava em outro bairro desde que se casara.

Minha mente só conseguia formular uma pergunta: “Como Você pode me trair?” eu não entendia como o Deus que eu tanto amava, o Deus de maravilhas e que me presenteava com jardins floridos e arco-íris, podia arrancar de mim a pessoa mais importante na vida. E eu dizia em voz alta: “Eu não te amo mais. Você me traiu.” Todo o caminho até a casa de minha irmã; a dor e o desespero me consumiam e eram apenas essas palavras que vinham à minha mente: “Você me traiu. Eu não te amo mais.”

Enquanto esperávamos que minha irmã e meu cunhado se arrumassem para voltarem conosco, fiquei sentada em um canto na sala, sem forças, sem consolo, sem querer consolo de ninguém, pois não havia nada que alguém pudesse dizer que fosse diminuir a dor que eu sentia, e que na verdade eram duas, a dor pela perda do meu pai, e essa me partia em pedaços, e a dor por me julgar traída por um amigo fiel, alguém que jamais falhara comigo e quando mais precisei, simplesmente me virara as costas.

Foi então que meu irmão se aproximou com um papel nas mãos, uma daquelas mensagens religiosas que às vezes nos entregam na rua, e aquela havia sido deixada na porta da minha irmã, naquele dia, meu cunhado a colocara sobre a televisão sem mesmo a ler; estava ali, até que meu irmão a leu e disse: “ É pra você, sua resposta. Deus mandou pra você.” Eu peguei o papel e estava escrito:

Ante o além

A vida não termina onde a morte aparece. Não transforme saudade em fel nos que se foram. Eles seguem contigo, conquanto de outra forma. Dá-lhes amor e paz, por muito que padeças. Eles também te esperam procurando amparar-te. Todos estamos juntos na presença de Deus.

Emmanuel

Recomecei a chorar, mas dessa vez as lágrimas não eram de raiva ou de revolta. A dor pela perda ainda era grande e como eu disse demorou muito a se tornar suportável. Mas naquele momento eu me senti de algum modo acolhida, amparada, abraçada, de tal forma, que me fez não desejar morrer de dor também.

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